O cérebro sobrevive e o corpo é que paga

Quando enfrentamos desafios, o cérebro entra em um estado de alerta, dando origem a um conjunto de respostas fisiológicas e emocionais necessárias para lidar com a situação.

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Quando há um evento traumático, o cérebro codifica as informações sensoriais relacionadas com esse acontecimento Tiago Lopes/Arquivo
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O cérebro humano é uma maravilha da natureza (digo eu que sou neurocientista e, portanto, muito suspeita), capaz de aprender, adaptar-se e enfrentar desafios de formas incríveis para garantir a sobrevivência humana mesmo em situações extremas.

Um fenómeno interessante foi o denominado "movimento das memórias reprimidas" que ganhou destaque nas décadas de 1980 e 1990, principalmente nos Estados Unidos. Este movimento surgiu da crença de que as pessoas eram capazes de recuperar e relembrar memórias de eventos traumáticos reprimidos, geralmente relacionados com abuso sexual ou outras formas de trauma na infância. Acreditava-se que estas memórias poderiam ser recuperadas através de técnicas terapêuticas específicas, como a hipnose regressiva ou a terapia de recuperação de memória, e tornou-se bastante popular na época.

No entanto, a abordagem é altamente controversa. Muitos profissionais de saúde, terapeutas e investigadores levantaram preocupações em relação à veracidade dessas memórias recuperadas, destacando o papel da sugestão, da influência do terapeuta e da possibilidade de criação de memórias falsas. Aliás, vários casos de "recuperação" de memórias de abuso sexual infantil resultaram em controvérsias legais e éticas, com base em memórias reprimidas que posteriormente foram contestadas e, com o tempo, estes métodos perderam credibilidade.

Mas este assunto levanta uma questão muito interessante acerca dos mecanismos através dos quais o cérebro processa fenómenos traumáticos.

Quando enfrentamos desafios, o cérebro entra em um estado de alerta, dando origem a um conjunto de respostas fisiológicas e emocionais necessárias para lidar com a situação. Na vertente mais extrema, ocorre o trauma: uma experiência avassaladora que sobrecarrega a nossa capacidade de gestão, desencadeando uma série de respostas emocionais e cognitivas. O cérebro processa o trauma de maneiras complexas, desde a percepção inicial até à consolidação da memória e a subsequente recuperação.

Quando um evento traumático ocorre, o cérebro codifica as informações sensoriais relacionadas com esse acontecimento e vai armazená-las em diferentes regiões, como o córtex sensorial. Por sua vez, as memórias traumáticas desencadeiam respostas emocionais intensas, que são processadas em regiões específicas do cérebro, como o sistema límbico, do qual faz parte a amígdala (diferente das amígdalas palatinas na garganta!).

A consolidação da memória do trauma envolve a transferência das informações e contexto para áreas de armazenamento de longo prazo, como o hipocampo. Devido a uma interação forte entre a amígdala e o hipocampo, a reação a estímulos ou lembranças do evento traumático podem desencadear respostas emocionais violentas, flashbacks e sintomas físicos intensos. Temos o exemplo clássico que ilustra este processo, que é a reacção dos soldados quando ouvem sons semelhantes a tiros e revivem o momento de forma intensa.

Neste contexto, o cérebro humano pode reprimir memórias traumáticas como mecanismo de defesa psicológica. É um fenómeno complexo que pode envolver bloqueio consciente, mecanismos de defesa inconscientes e fragmentação da memória. No entanto, nem todas as pessoas que viveram eventos traumáticos irão reprimir essas memórias e a repressão não significa necessariamente que essas memórias desapareçam completamente.

O fenómeno das ‘memórias reprimidas’ demonstra que cérebro humano também é suscetível à criação de falsas memórias, onde eventos que nunca ocorreram são relembrados como reais. Essas falsas memórias podem ser induzidas por sugestão, manipulação ou outros fatores externos, demonstrando a capacidade e a complexidade da memória humana.

A boa notícia é que o cérebro tem também a capacidade de processar e integrar gradualmente o trauma ao longo do tempo, especialmente com o apoio de intervenções terapêuticas adequadas. Variáveis como a gravidade do evento, o histórico de trauma anterior e o sistema de apoio social e emocional, vão influenciar a forma e o sucesso da recuperação do cérebro.

A mensagem importante é que não se deve negligenciar o impacto de eventos traumáticos na saúde mental e na qualidade de vida. E não falamos apenas de cenários de guerra ou abusos sexuais. Um acidente de automóvel, ter um familiar alcoólico ou testemunhar uma cena de grande violência podem ter consequências marcantes na vida de uma pessoa.

Isso mesmo nos diz o livro que recomendo este mês: O corpo não esquece. A obra aborda a forma como reagimos a trauma e foi escrita por Bessel van der Kolk, professor de psiquiatria e diretor de Centro de Trauma em Boston, com prefácio do nosso Albino Oliveira-Maia, psiquiatra e investigador da Fundação Champalimaud. Acompanha a fabulosa música Kite, dos U2 do apropriado álbum ‘All that you can’t leave behind’.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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